- Publicado em
- 28/12/2023
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Crise no Golfo Pérsico: entenda por que 6 países cortaram relações com o Catar e quais são as possíveis consequências As razões e as consequências do confronto diplomático em andamento entre Arábia Saudita, Barein, Emirados Árabes Unidos, Egito, Líbia, Maldivas e Iêmen contra o Catar.
O Catar é um minúsculo estado em uma península posicionada no meio do Golfo Pérsico, com uma extensão territorial que equivale a metade do estado de Sergipe e uma população comparável ao estado de Rondônia.
Mas esse pequeno emirado é uma das maiores potências energéticas do mundo, contando com a terceira reserva de gás natural do planeta e importantes jazidas de petróleo.
Líbia, Iêmen, Egito, Arábia Saudita, Bahrein e os Emirados Árabes Unidos anunciaram nesta segunda-feira (5) que cortaram as relações diplomáticas com o Catar, acusado de criar instabilidade na região do Golfo Pérsico, ao apoiar grupos terroristas. O Catar diz que o rompimento é injustificado. O rompimento vem dias após a visita do presidente dos EUA, Donald Trump, à região. Os governos do Irã e da Turquia defenderam a abertura de diálogo do Catar e seus vizinhos.
Nos últimos anos, o Catar decidiu jogar também no grande tabuleiro da geopolítica internacional. Além de permitir a instalação de uma importante base aeronaval dos Estados Unidos em seu território, interveio diretamente nas guerras da Síria e da Líbia, enviando armas e munições para os rebeldes sírios, e utilizando seus caças miliares para bombardear as forças do então ditador líbio Muammar Kadafi.
Mas além do aspecto militar, os emires do Catar, da dinastia al-Thani, também decidiram investir na imagem do pequeno país. Por exemplo, ganhando a disputa para hospedar a Copa do Mundo de Futebol de 2022 (com inúmeros problemas logísticos e as violações de direitos humanos que seguiram) e também comprando cotas acionárias de importantes empresas mundo afora, geralmente utilizando as enormes riquezas do fundo soberano quatariano.
Investimentos
Somente no Reino Unido, o Catar possui hoje a famosa loja de departamento Harrods, o arranha-céu mais alto da Europa (“The Shard”), parte do distrito empresarial Canary Wharf e da Bolsa valores, além de inúmeras propriedades imobiliárias de luxo. Um patrimônio superior àquele da própria Rainha Elizabeth II. Mas o governo do Catar também investiu em cotas da Porsche e Volkswagen, na casa de moda italiana Valentino, hotéis de luxo na Sardenha, e até uma coleção de arte com obras de Cézanne, Rothko e Warhol.
O intervenção internacional da pequena monarquia não se limitou ao investimento em grandes marcas ocidentais. O Catar procurou ainda explorar as contradições entre os países do Golfo Pérsico para aumentar a sua liderança regional, mas isso o levou a uma rota de colisão com a Arábia Saudita e com outros vizinhos. Além disso, a poderosa rede de televisão do governo do Catar, “Al Jazeera", baseada em Doha, é vista com desconfiança e antipatia pelos governos na região, pois várias vezes publicou notícias indesejáveis para esses regimes.
Al Jazeera (Foto: Associated Press)
Quais são as razões que levaram a essa crise diplomática?
Os países vizinhos acusam o Catar de estar apoiando grupos terroristas, como a Irmandade Muçulmana (ligação que já tinha provocado a suspensão dos laços diplomáticos durante 8 meses, em 2014), e a estreita relação com o Irã xiita, que a Arábia Saudita considera seu inimigo número 1, mas com o qual o Qatar tem boas relações, além de fortes interesses econômicos (compartilham uma enorme bacia de gás natural no Golfo).
O estopim para a crise foi aceso no dia 24 de maio, com algumas declarações atribuídas ao emir do Catar, Tamim bin Hamad al-Thani. Palavras positivas em relação a Teerã, consideradas desagradáveis pelos sauditas. “Não há razão para essa hostilidade dos árabes contra o Irã”, teria declarado o emir, que também elogiou os grupos Hezbollah e Hamas, ambos amigos do Irã. Três dias depois, al-Thani ligou para o presidente iraniano Hassan Rouhani para felicitá-lo por sua recente reeleição. Uma clara rejeição a alinhar-se com a Arábia Saudita, que não gostou nada.
Emir do Catar Tamim bin Hamad al-Thani (Foto: Reuters)
Imediatamente após as declarações do emir, os meios de comunicação do Catar foram censurados em todos os territórios da Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos, Bahrein e Egito. O governo do Catar alegou logo em seguida que o Emir nunca teria proferido essas declarações, e que o país teria sido vítima de um ataque hacker.
Entretanto, apesar de o Catar ter ajudado a Arábia Saudita a reprimir as revoltas xiitas no Bahrein em 2011, o país não hesitou em usar conflitos regionais para seus próprios interesses. Al Jazeera é muitas vezes acusada de conceder excessivo espaço para os xiitas do Bahrain e da província saudita de Qatif, algo considerado inaceitável pelas monarquias locais.
Recentemente um jornalista foi preso no Bahrein sob a acusação de enviar filmes não autorizados para TV do Catar. E é possível que a recente visita de Donald Trump à Arábia Saudita e suas duras palavras contra o Irã tenham fortalecido a percepção dos sauditas e dos emirados que a hora de resolver esse excesso de independência do Qatar tinha chegado de vez.
Quais podem ser as consequências?
A primeira consequência imediata dessa crise foi um aumento do preço do petróleo de 1,24% (chegando a US$ 50,57 ao barril) e a queda a bolsa de valores de Doha de mais de 7%. Os voos de companhias aéreas como Emirates, Etihad e FlyDubai e Qatar Airways foram suspensos nos territórios de Arábia Saudita, Bahrein, Emirados Árabes Unidos, Egito, Líbia, Maldivas e Iêmen.
E o que deixou essa situação ainda mais grave, e confusa, foi que a crise diplomática foi acompanhada do fechamento das fronteiras e a suspensão de todas as ligações logísticas com Doha. A única fronteira terrestre que a península possui é aquela com a Arábia Saudita, que vetou não somente a aterrissagem mas também o sobrevoo de aviões do Catar. Em suma, a pequena monarquia árabe está geograficamente isolada e cercada.
Isso que levou dezenas de milhares de catarianos a correr aos supermercados por causa do medo de uma crise alimentar provocada pelo fechamento da fronteira. Milhares de carrinhos de compras foram lotados de produtos, filas intermináveis se formaram nos caixas e as prateleiras já estão vazias. O medo da escassez de itens básicos tem fundamento: o Qatar é uma economia baseada no petróleo e importa cerca de 90% dos alimentos vendidos em suas lojas. A grande maioria dos quais vem através da fronteira terrestre com a Arábia Saudita.
Filas em supermercado em Doha (Foto: Associated Press)
Além disso, a Arábia Saudita também convidou grandes empresas internacionais a interromper relações econômicas e comerciais com o Catar. O que foi percebido como ameaça velada contra as grandes corporações, que seriam excluídas da Arábia Saudita, mercado muito maior em comparação com o Qatar, se não obedecerem a ordem.
Se no momento o Catar parece estar equipado com meios econômicos e políticos suficientes para resistir ao isolamento regional -- Doha tem um fundo soberano de quase US$ 340 bilhões e um superávit comercial que somente em abril foi de US$ 2,7 bilhões (cerca de um terço do superávit registrado por um país gigantesco como o Brasil) -- a crise diplomática atual poderia, por outro outro lado, ter consequências negativas mais amplas em contratos e investimentos de longo prazo.
Prestígio internacional
Além do aspecto econômico, haveria implicações em larga escala também para o prestígio do país, especialmente na moeda nacional, na qual o Catar investiu fortemente nos últimos anos. O exemplo mais óbvio de consequências negativas seriam os danos à reputação do país se a crise tivesse atingir a organização da Copa do Mundo de 2022, evento no qual Doha investiu um enorme capital político, económico e diplomático, e do qual espera um retorno proporcional ao esforço.
Ampliando o quadro para a geopolítica regional, é claro que com um isolamento total será impossível para a monarquia do Catar levar adiante uma política externa como a dos últimos anos. O esforço que está sendo feito pela frente dos países sunitas parece ser exatamente aquele de fechar permanentemente os espaços de autonomia diplomática e política do pequeno país árabe. Não por acaso, não somente os embaixadores como todos os cidadãos do Qatar foram expulsos da Arábia Saudita, Bahrein, Emirados Árabes Unidos, Egito, Líbia, Maldivas e Iêmen.
O estádio Khalifa International é visto em Doha, no Catar. Este é o primeiro estádio a ficar pronto para a Copa do Mundo 2022 (Foto: Catar's Supreme Committee for Delivery & Legacy/Divulgação via Reuters)
Primavera Árabe
A crise já tinha começado em 2014, quando três membros da organização internacional Conselho de Cooperação do Golfo - Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos e Bahrein – seguidos pelo Egito, tinham retirado seus embaixadores do Catar (o Kuwait e o Omã permaneceram naquela ocasião, como muitas outras vezes, neutrais). Esses mesmos países estão envolvidos no desentendimento desta segunda, e a eles se juntou o Iêmen, onde a Arábia Saudita está lutando uma “guerra suja” contra os rebeldes pró-Irã. E também o governo da Líbia sediado na cidade de Tobruk, patrocinado pelos Emirados Árabes Unidos e pelo Egito e não reconhecido pela comunidade internacional.
Em 2014, a crise foi provocada principalmente pelo apoio do Catar à Irmandade Muçulmana, considerada um grupo terrorista pela Arábia Saudita e pelos Emirados Árabes Unidos. O Qatar apoiou e usou o grupo para projetar sua influência em toda a região, particularmente durante a Primavera Árabe de 2011. Quando, em 2013, o general egípcio Abdel Fattah Al Sisi derrubou o presidente Mohammed Morsi (que era da Irmandade Muçulmana), Abu Dhabi e Riad financiaram generosamente o novo líder do Egito.
Doha, ao contrário, foi acusada de ter continuado a apoiar a Irmandade Muçulmana, também através da TV Al Jazeera, e de estar hospedando clérigos e líderes da Irmandade em seu território. Depois de oito meses de ruptura, os países chegaram a uma reconciliação: o Catar aceitou silenciar alguns líderes da Irmandade e outros foram expulsos. Mas a disputa na verdade não se resolveu completamente, já que o Qatar continuou a apoiar, com discrição, a Irmandade, e os líderes expulsos acabaram indo na Turquia, amiga do Qatar, de onde continuaram sua obra de pregação contra o Egito e a Arábia Saudita. Além disso, as relações com o Irã aumentaram sensivelmente.
Vários funcionários de governos ocidentais acusaram também o Catar de permitir ou encorajar os financiamentos a grupos jihadistas ativos na Síria como “al Nusra”, grupo ligado à Al-Qaeda, ou Hamas. Entretanto, muitos outros países do Golfo, incluindo a Arábia Saudita, desde o começo da guerra na Síria em 2011, se tornaram território de trânsito de financiamentos para grupos jihadistas por causa de seu sistema bancário não rastreável. O próprio EI teria sido financiado por ricos árabes e também por importantes clérigos religiosos extremistas sauditas, kuaitianos, emiradenses e qatarianos.
Alunos da escola secundária Omar Bin Alkahabab, de, Doha, Catar (Foto: Julian Germain / Divulgação / Prestel Publishing)
O emir Hassan da Jordânia declarou recentemente à TV France24: "Se não são os países do Golfo que financiam o Estado Islâmico, quem faria isso?". Mas é importante notar que, ao contrário da Al-Qaeda e outros grupos, o EI tem sido capaz de diversificar suas fontes de renda para permanecer independente dos doadores.
Essa crise gerou preocupação também nos Estados Unidos. O próprio Secretário de Estado americano, Rex Tillerson, não se pronunciou sobre o mérito da disputa, mas pediu para todos seus aliados regionais (Bahrein e Catar hospedam as duas bases mais importantes dos EUA na região) para resolver a crise rapidamente.